sábado, 26 de dezembro de 2015

Na Senda do Milênio, de Norman Cohn

De Joaquim de Fiore ao Padre Cícero

COHN, Norman. Na Senda do Milênio: Milenaristas Revolucionários e Anarquistas Místicos da idade Média. Tradução de Fernando Neves e Antônio Vasconcelos. Lisboa: Editorial Presença, 1980. 333p.

Um enxame de moscas o atacou em uma floresta. Perturbado, viveu um par de anos como eremita, vestindo-se de peles de animais e orando. Começou a caminhar pelo mundo. O povo o seguia. Ganhou fama de santo (a multidão aumentava). A Igreja oficial no começo o apoiava. Depois passou a desconfiar dele e finalmente a hostilizá-lo. Os proprietários passaram a não gostar da sua conversa sobre justiça. Uma patrulha o cortou literalmente em pedaços. Seus seguidores, dispersos, continuaram a acreditar que era um santo homem.

Poderia ser a história de Antônio Conselheiro, do Beato José Lourenço ou mesmo do Padre Cícero – mas se trata de um monge sem nome do Século VI, perto da cidade de Tours na França. O professor universitário britânico Norman Cohn conta sua história logo no começo deste ensaio publicado originalmente em 1957, e depois desta muitas outras histórias de homens santos se sucedem.

Na Senda do Milênio procura analisar as agitações político-religiosas entre os pobres desenraizados do Norte e do Centro da Europa na Baixa Idade Média. Os desenraizados, frisa o autor. Não necessariamente os pobres. Para Norman Cohn, a pobreza tradicional dentro do sistema de vida antigo proporcionava uma vida terrível aos pobres – mas segura. As modificações advindas da crescente penetração das transações comerciais envolvendo moeda abalaram esse modo de vida, criando riqueza – e uma desigualdade social antes impensável.

Esta mudança da sociedade encontrou um caldo de cultura formado por uma tradição de escritos apocalípticos que vinham desde a cultura judaica pré-cristã – a qual narrava o fim do mundo, que se misturava a uma antiga tradição dissidente dentro da Igreja, tradição esta que clamava pela volta a uma vida apostólica sem a corrupção do clero hodierno.

Esses fatores se conjugaram para o surgimento de movimentos milenaristas que pugnavam por uma salvação coletiva, terrena (ainda neste mundo), iminente (estaria próxima), total (o novo mundo seria perfeito), e miraculosa (seria realizada com ajuda do sobrenatural). Esta transformação viria como resposta a um mundo tomado pela ganância. Tais movimentos podiam ser (e muitas vezes eram) violentos. Os Tafurs massacraram muçulmanos na época das cruzadas, os Pauperes matavam judeus e depois membros do clero.

Um legado duradouro dos movimentos milenaristas é a crença na existência de três estados na humanidade, o terceiro dos quais seria perfeito. Esta quimera viria das profecias do monge Joaquim de Fiore e teria ressonâncias longínquas na teoria marxista e na ideia de um Terceiro Reich.

O autor não pesquisou e mal se refere a movimentos milenaristas fora de seu período escolhido. Um brasileiro não deixa de lembrar agitações que ocorreram ao final do século XIX e começos do XX em territórios tão díspares como Canudos na Bahia e o Contestado em Santa Catarina. É de se lamentar que o autor não tenha tido conhecimento deles. Mostram que o milenarismo se encontra bem próximo de nós, talvez mais ainda que dos europeus.